Wednesday, October 3, 2012

Nas Altas Montanhas - Canção / Epílogo

Ó meio-dia da vida! Solene momento!
Ó jardim de verão!
Inquieta felicidade em estar de pé e espreitar e esperar: -
Os amigos aguardo, dia e noite a postos,
Onde estais, amigos? Vinde! É tempo! É tempo!

Não foi para vós que o cinzento da geleira
Hoje se adornou de rosas?
O riacho vos busca, sequiosos hoje se aglomeram e se empurram
O vento e as nuvens nas alturas azuis,
A espreitar por vós a partir da mais distante vista de pássaro.

Em alturas extremas foi posta minha mesa para vós: -
Quem tão próximo mora
Das estrelas, das distancias apavorantes do abismo?
Meu reino - que reino mais longe se estendeu?
E o meu mel - quem é que o provou? ...

- Aí estais, amigos! Ai, mas não sou eu
A quem procurais?
Vós hesitais, pasmados - ah, preferia vosso rancor!
Eu - não sou mais eu? Mudamos a mão, o passo, a face?
E o que sou, amigos - não o sou para vós?

Outro terei me tornado? E estranho a mim mesmo?
De mim mesmo evadido?
Um lutador que vezes demais a si mesmo subjugou?
Vezes demais se opôs à própria força,
Ferido e tolhido pela vitória sobre si próprio?

Procurei o lugar em que o vento sopra mais cortante?
Aprendi a morar,
Onde ninguém mora, nas zonas desertas do urso branco,
Desaprendi homem e deus, maldição e oração?
Tornei-me espectro a vagar sobre as geleiras?

- Vós, velhos amigos! Vede! Agora é pálida a vossa aparência,
Plenos de amor e assombro!
Não, ide! Sem ira! Aqui - não podeis vós habitar:
Aqui, em meio ao mais remoto reino de gelo e penhascos -
Aqui é preciso ser caçador e semelhante à camurça.

Um terrível caçador me tornei! - Vede, quão
Imponentemente retesado o meu arco!
Foi o mais forte de todos a tensionar com essa tensão -- :
Mas agora, ai! Perigosa é a seta,
Como nenhuma seta - fora daqui! - Para vosso bem! ...

Dais a volta? - Ó coração, tu suportas bastante,
Forte permaneceu a tua esperança:
Mantém a novos amigos as tuas portas abertas!
Deixa os velhos! Deixa as recordações!
Outrora eras jovens, agora - és jovem de um modo ainda melhor!

Oque no passado nos ligava, o laço de uma só esperança, -
Quem lê os sinais, ainda,
Que o amor uma vez inscreveu, empalidecidos?
Ao pergaminho o comparo, que a mão
Tocar teme - igual a ele, escurecido, queimado.

Não amigos mais, mas - que nome então darei? -
Apenas espectros de amigos!
Que à noite decerto ainda batem-me o coração e à janela,
Que me olham e falam: "Mas não éramos amigos?" -
Ó palavra murcha, que uma vez cheirava a rosas!

Ó ânsia juvenil que a si mesma enganou!
Aqueles por quem eu ansiei,
Que eu julgava a mim mesmo aparentados - transformados,
O fato de envelhecerem os baniu para longe:
Apenas quem se transforma permanece a mim aparentado.

Ó meio-dia da vida! Segunda juventude!
Ó jardim de verão!
Inquieta felicidade em estar de pé e espreitar e esperar!
Aguardo os amigos, dia e noite a postos,
Os novos amigos! Vinde! É tempo! É tempo!

***

Esta canção terminou - da saudade o doce grito
Morreu na boca:
Obra de um mago, do amigo na hora oportuna,
Do amigo do meio-dia - não! Não pergunteis quem seja -
Foi ao meio-dia que um se tornou dois...

Celebramos agora, seguros de unida vitória.
A festa das festas:
O amigo Zaratustra chegou, o hóspede dos hóspedes!
Ri agora o mundo, rasgou-se a horrenda cortina,
Chegou a hora do casamento entre a luz e as trevas...


Friedrich Wilhelm Nietzsche
Além do Bem e do Mal - Epílogo (1886)


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